Obrigado querida Irmã pelo maravilhoso texto.Agradeço por
compartilhar este com nossos Irmãos de Fé.
Abraços Fraternos
Ricardo
Cafuza de Iansã
(Eloisa Helena Maranhão Lellis)
Ela não passava ainda de um bebê de fraldas, tentando se equilibrar
nos pezinhos trôpegos, cabelos começando a crescer, ondulando pelos
ombros, muito pretos, pele morena avermelhada, o que lhe rendeu o
apelido de Urucum, olhos negros de boi bravo, boi marruá indomável,
fugido pros matos quando se tentou domesticá-lo, olhinhos pequenos,
sempre ardendo em mil febres diferentes, sempre em busca.
Pois ela não tinha ainda dois anos, e nem mais era amamentada, pois
recusava aquele leite e aquele colo que a deixavam inquieta de vontade
de andar e correr pelos terreiros - e que depois passaria o resto da
vida procurando, não os terreiros, território doméstico, mas leite
materno e colo que a fizessem sossegar, procurando e nunca encontrando
-, e num desses dias quaisquer entre o primeiro e o segundo
aniversário o pai de santo jogou os búzios e declarou, cerimonioso, "é
filha de Iansã, essa menina". A mãe calou-se, desejava uma filha menos
guerreira, filha de Oxum, talvez, de Iemanjá, de algum santo mais
tranqüilo, mas a escolha não era dela, e a filha era o que deveria
ser, Epa Hei Iansã!
Mas o ajuntó da menina era Oxossi, senhor das florestas virgens, das
matas verdes não cultivadas, e quem conhece de santos de cabeça e
ajuntós pode imaginar o que será dessa cafuzinha.
Pra quem não conhece, conto eu.
Foi crescendo inquieta, explosiva, indomável, diziam os vizinhos, onde
já se viu uma criança tão estourada, e tão briguenta, e tão
apimentada, parece um vatapá cheio de dendê, que boca suporta?, salve
Exu!, ô meu pai, deixe a menina em paz, já não basta ser filha de
Iansã e Oxóssi?
Ainda pequena quantas vezes havia fugido pras matas, depois de ataques
de cólera por coisas mínimas, ou aberto os currais, os chiqueiros, os
galinheiros, espantando os animais domésticos de volta à selva de onde
não deveriam ter sido retirados. Quem quiser comer que cace, respondia
em sua lógica irrefutável quando perguntada se deixaria sua aldeia
passar fome, e então se podia ouvir a gargalhada de Oxossi balançando
as folhas das árvores, e o pai de santo meneava a cabeça.
Enquanto as outras meninas miravam-se nos espelhos e teciam saias
coloridas, Cafuza fabricava arcos e flechas para a caça, e mirava-se
nas águas dos rios e lagoas, e era ali que conversava com Oxum e a
Iara, e conseguiu o milagre de vê-las juntas, penteando-se os cabelos
uma da outra, e ensinaram a menina a tecer tranças e enfeitar-se com
búzios e conchas coloridas, e flores e penas, e borboletas vivas e
pequenas pererecas, e era o ser mais atraente e mais estranho, aquela
mocinha andando na aldeia com brincos de borboletas, colares de
besouros e joaninhas, e pulseiras de pererecas ou cobras enroladas nos
pulsos e tornozelos.
Quando queria desculpar-se ou agradar alguém ela trazia alguma ave
caçada e depositava aos pés da pessoa, e saía feliz por ter dado o
melhor de si a quem amava. Nem percebia que seu melhor de si não era
compreendido nem acatado, ao menos enquanto era jovem. Depois passou a
perceber isso, e ficar mais furiosa ainda quando não a aceitavam como
era. Que culpa podia ter de ser o que era, e não o que desejavam de
si.
Crescia também cheia de charme a cafuza, sensual, aquele rebolado
deixava os homens loucos, os negros, os índios, os cafuzos, até os
brancos que por ali passavam para negociar em lombo de burros,
primeiro, depois nos trens, enlouqueciam de desejo pela cafuza,
imaginavam que domá-la na cama seria o que de melhor podia haver na
vida.
Homens. Sem comentários. Todos sabemos como são os homens. Mas ninguém
sabe quem são realmente as mulheres.
Principalmente uma mulher cafuza, filha de Iansã e Oxossi, que não
nascera para ser domada, para viver domesticada, para seguir os
caminhos dos homens que a queriam para si, sim, quem resistia a tanto
furor e tanta vida, mas a queriam submissa, seguindo os caminhos que
eles escolhessem.
Cafuza nunca aceitaria isso. Nunca, vírgula, depois que se conheceu,
e, já na metade da vida, aprendeu que não valia a pena deixar o
próprio caminho para seguir o de outro.
Até chegar nesse ponto ela seguiu, seguiu por amor, seguiu por
carência, seguiu por necessidade de colo e leite materno, seguiu por
medo de andar no caminho que era dela, seguiu por tantos motivos que
quando se encarou de frente, depois de mais um casamento fracassado,
dos tantos casos de amor que tivera, quando se encarou ficou
estupefata de ter cedido tanto e por tão pouco. Estupefata de ter
vivido buscando no sexo o carinho que não lhe tinham, a ternura que
desejava, mas espantava com seus acessos de fúria e sua sinceridade
atroz. Quando ventava não sobrava pedra sobre pedra, palha que havia
sido tão bem colocada nos telhados, paredes de taipa e pau-a-pique,
árvores fixadas em suas raízes.
Essa consciência surgiu num de seus acessos de paixão, que a deixaram
de quatro, arriada, e quando percebeu, tudo com que aquele novo amor
lhe acenava eram os mesmos caminhos alheios - os dele, agora -, alguns
carinhos esparsos - quando ele tivesse tempo ou vontade-, companhia
quando ela estivesse tranqüila para ser o pouso que ele desejava
dela.
Mas ela nunca estava tranqüila. Não servia de pouso, pois era o
próprio vento agitado que empurrava e fazia soçobrar as naus, eram os
furacões, e dentro de si trazia tufões e ventanias carregadas de
nuvens escuras, prontas a tragar incautos. Mas não adiantava avisar.
Homens são assim, detestam avisos, não prestam atenção ao perigo, para
depois se queixarem das injustiças da vida.
Os intrépidos, que tiveram ousadia de se aproximar e conviver com ela,
logo se cansavam, exaustos, das iras, das tempestades sem motivos -
pelo menos motivos que eles pudessem detectar -, das gargalhadas fora
de hora, e dos choros convulsos, muitas vezes depois do sexo, e nunca
sabiam o que fazer com uma mulher daquela intensidade, já que não
haviam conseguido o intento de domá-la.
Ela também se cansava de ceder, de fingir - mesmo que com a melhor das
intenções, e a melhor das motivações era amar tanto e querer estar
junto do amado -, cansava de estar sempre tentando ser quem não era,
sempre tentando controlar suas paixões e manter-se estável, centrada,
quando nunca tivera centro - tão excêntrica -, ou talvez tivesse
muitos, vários, constantemente oscilando entre seus múltiplos centros.
Dançava rodopiando, não sabia passos de valsa.
O único homem que a compreendera, e compreendera tanto que decidiu
dançar sozinho o resto da vida depois de dançar com ela, entendera que
ela não havia nascido para seguir ninguém, e que não teria dono,
nunca. Se conheceram num forró, um arrasta-pé banhado a Luiz Gonzaga,
ele no canto, solitário, encolhido, marcado de bexigas no rosto e no
corpo todo, envergonhado, ela espiando, até que o tirou para dançar...
Tu que andas pelo mundo, sabiá, tu que tanto já voou, tu que cantas
passarinho, alivia a minha dor... tem pena d'eu, diz por favor, tu que
choras passarinho, onde anda meu amor...
No rodopio e no hálito da cafuza o moreno embelezou-se, sentiu-se
alto, pele limpa, bonito até, feliz naquela noite. Nunca mais quis
dançar com mulher nenhuma, e deixou a cafuza para que seguisse o
próprio caminho. Ele foi o único que soube amá-la como ela era. Por
isso mesmo deixou-a livre, não a obrigou a seguir com ele pelos
caminhos que, sabia, não eram os dela.
Ela continuou sua sina.
Conforme o tempo ia passando, Cafuza tornava-se mais mansa, menos
estouvada, mas cheia das marcas das danças e das ventanias que
provocava. Também nela ficavam marcas, não só nos outros que a
acusavam de lanhar seus corpos e almas com sua guerra. Toda guerra
fere dos dois lados da batalha, ela foi aprendendo, e ninguém briga
sozinho. Muitas vezes o réu era a verdadeira vítima, e agiu como
reação ao que sofreu. Outras, não. Nada se pode generalizar.
Era cada vez menos vista na aldeia, e mais nas matas. Continuava
caçando solitariamente, principalmente nas noites banhadas de luar, e
um branco doutor que a viu caçando voltou para sua Alemanha, depois da
expedição, com aquela Ártemis cafuza nas retinas, abandonou seu
cristianismo de fachada e passou a estudar o sincretismo, até entender
o que Diana dos Efésios fazia ali nas selvas da América do Sul,
travestida de índia e negra. Não sei se entendeu.
De tanto caçar e perambular mata adentro, acabou por encontrar-se com
Oçãnhe, que apiedou-se dela, depois de meses de rabos de olhos mútuos
um no outro, e oferendas de todo tipo de caça que ela lhe trazia, mas
apiedou-se mais quando a viu estendida sobre o húmus, chorando por
tudo que fizera intempestivamente na vida, e por todos os caminhos que
não deram certo, e por todas as marcas que deixara em todos com quem
havia se encontrado, ali abandonada e cheia de culpas. Então a ensinou
a usar ervas e preparar bebidas e cantar cantos que a consolavam e
aliviavam sua solidão. Deu-lhe um pequeno atabaque que ela passou a
usar amarrado à cintura, e tocar quando já não suportava mais o
silêncio a que havia se submetido por opção própria. E por falta de
opção, também.
"Quem vem lá?" Aquela voz não lhe era estranha. Já a tinha ouvido nos
sonhos, e muitas vezes dentro dos cômodos onde os moribundos jaziam,
confortados pela comunidade, até atravessarem o umbral. Era rouca, a
voz, magoada, ressentida e envelhecida de milhares de séculos, uma voz
que saíra do começo dos tempos. Cafuza tremeu, mas não se entregou.
Nunca havia se entregado, não o faria agora.
"Tire essas flechas com pontas de metal", a velha disse, e Cafuza
obedeceu. Compreendeu, também. Aquele pântano onde havia entrado eram
as terras de Nanã Buruke, e nem Iansã se atreveria a enfrentá-la. Não
agora, quando estava velha demais para lutar. As duas se olharam, avó
e neta, avó e avó, e já não sabiam quem era uma e quem era outra.
Cafuza, num último ato impulsivo, lançou-se nos braços de Nanã.
Afundou na terra fofa enlameada. Havia, enfim, chegado ao porto.
Encontrado o repouso.''
compartilhar este com nossos Irmãos de Fé.
Abraços Fraternos
Ricardo
Cafuza de Iansã
(Eloisa Helena Maranhão Lellis)
Ela não passava ainda de um bebê de fraldas, tentando se equilibrar
nos pezinhos trôpegos, cabelos começando a crescer, ondulando pelos
ombros, muito pretos, pele morena avermelhada, o que lhe rendeu o
apelido de Urucum, olhos negros de boi bravo, boi marruá indomável,
fugido pros matos quando se tentou domesticá-lo, olhinhos pequenos,
sempre ardendo em mil febres diferentes, sempre em busca.
Pois ela não tinha ainda dois anos, e nem mais era amamentada, pois
recusava aquele leite e aquele colo que a deixavam inquieta de vontade
de andar e correr pelos terreiros - e que depois passaria o resto da
vida procurando, não os terreiros, território doméstico, mas leite
materno e colo que a fizessem sossegar, procurando e nunca encontrando
-, e num desses dias quaisquer entre o primeiro e o segundo
aniversário o pai de santo jogou os búzios e declarou, cerimonioso, "é
filha de Iansã, essa menina". A mãe calou-se, desejava uma filha menos
guerreira, filha de Oxum, talvez, de Iemanjá, de algum santo mais
tranqüilo, mas a escolha não era dela, e a filha era o que deveria
ser, Epa Hei Iansã!
Mas o ajuntó da menina era Oxossi, senhor das florestas virgens, das
matas verdes não cultivadas, e quem conhece de santos de cabeça e
ajuntós pode imaginar o que será dessa cafuzinha.
Pra quem não conhece, conto eu.
Foi crescendo inquieta, explosiva, indomável, diziam os vizinhos, onde
já se viu uma criança tão estourada, e tão briguenta, e tão
apimentada, parece um vatapá cheio de dendê, que boca suporta?, salve
Exu!, ô meu pai, deixe a menina em paz, já não basta ser filha de
Iansã e Oxóssi?
Ainda pequena quantas vezes havia fugido pras matas, depois de ataques
de cólera por coisas mínimas, ou aberto os currais, os chiqueiros, os
galinheiros, espantando os animais domésticos de volta à selva de onde
não deveriam ter sido retirados. Quem quiser comer que cace, respondia
em sua lógica irrefutável quando perguntada se deixaria sua aldeia
passar fome, e então se podia ouvir a gargalhada de Oxossi balançando
as folhas das árvores, e o pai de santo meneava a cabeça.
Enquanto as outras meninas miravam-se nos espelhos e teciam saias
coloridas, Cafuza fabricava arcos e flechas para a caça, e mirava-se
nas águas dos rios e lagoas, e era ali que conversava com Oxum e a
Iara, e conseguiu o milagre de vê-las juntas, penteando-se os cabelos
uma da outra, e ensinaram a menina a tecer tranças e enfeitar-se com
búzios e conchas coloridas, e flores e penas, e borboletas vivas e
pequenas pererecas, e era o ser mais atraente e mais estranho, aquela
mocinha andando na aldeia com brincos de borboletas, colares de
besouros e joaninhas, e pulseiras de pererecas ou cobras enroladas nos
pulsos e tornozelos.
Quando queria desculpar-se ou agradar alguém ela trazia alguma ave
caçada e depositava aos pés da pessoa, e saía feliz por ter dado o
melhor de si a quem amava. Nem percebia que seu melhor de si não era
compreendido nem acatado, ao menos enquanto era jovem. Depois passou a
perceber isso, e ficar mais furiosa ainda quando não a aceitavam como
era. Que culpa podia ter de ser o que era, e não o que desejavam de
si.
Crescia também cheia de charme a cafuza, sensual, aquele rebolado
deixava os homens loucos, os negros, os índios, os cafuzos, até os
brancos que por ali passavam para negociar em lombo de burros,
primeiro, depois nos trens, enlouqueciam de desejo pela cafuza,
imaginavam que domá-la na cama seria o que de melhor podia haver na
vida.
Homens. Sem comentários. Todos sabemos como são os homens. Mas ninguém
sabe quem são realmente as mulheres.
Principalmente uma mulher cafuza, filha de Iansã e Oxossi, que não
nascera para ser domada, para viver domesticada, para seguir os
caminhos dos homens que a queriam para si, sim, quem resistia a tanto
furor e tanta vida, mas a queriam submissa, seguindo os caminhos que
eles escolhessem.
Cafuza nunca aceitaria isso. Nunca, vírgula, depois que se conheceu,
e, já na metade da vida, aprendeu que não valia a pena deixar o
próprio caminho para seguir o de outro.
Até chegar nesse ponto ela seguiu, seguiu por amor, seguiu por
carência, seguiu por necessidade de colo e leite materno, seguiu por
medo de andar no caminho que era dela, seguiu por tantos motivos que
quando se encarou de frente, depois de mais um casamento fracassado,
dos tantos casos de amor que tivera, quando se encarou ficou
estupefata de ter cedido tanto e por tão pouco. Estupefata de ter
vivido buscando no sexo o carinho que não lhe tinham, a ternura que
desejava, mas espantava com seus acessos de fúria e sua sinceridade
atroz. Quando ventava não sobrava pedra sobre pedra, palha que havia
sido tão bem colocada nos telhados, paredes de taipa e pau-a-pique,
árvores fixadas em suas raízes.
Essa consciência surgiu num de seus acessos de paixão, que a deixaram
de quatro, arriada, e quando percebeu, tudo com que aquele novo amor
lhe acenava eram os mesmos caminhos alheios - os dele, agora -, alguns
carinhos esparsos - quando ele tivesse tempo ou vontade-, companhia
quando ela estivesse tranqüila para ser o pouso que ele desejava
dela.
Mas ela nunca estava tranqüila. Não servia de pouso, pois era o
próprio vento agitado que empurrava e fazia soçobrar as naus, eram os
furacões, e dentro de si trazia tufões e ventanias carregadas de
nuvens escuras, prontas a tragar incautos. Mas não adiantava avisar.
Homens são assim, detestam avisos, não prestam atenção ao perigo, para
depois se queixarem das injustiças da vida.
Os intrépidos, que tiveram ousadia de se aproximar e conviver com ela,
logo se cansavam, exaustos, das iras, das tempestades sem motivos -
pelo menos motivos que eles pudessem detectar -, das gargalhadas fora
de hora, e dos choros convulsos, muitas vezes depois do sexo, e nunca
sabiam o que fazer com uma mulher daquela intensidade, já que não
haviam conseguido o intento de domá-la.
Ela também se cansava de ceder, de fingir - mesmo que com a melhor das
intenções, e a melhor das motivações era amar tanto e querer estar
junto do amado -, cansava de estar sempre tentando ser quem não era,
sempre tentando controlar suas paixões e manter-se estável, centrada,
quando nunca tivera centro - tão excêntrica -, ou talvez tivesse
muitos, vários, constantemente oscilando entre seus múltiplos centros.
Dançava rodopiando, não sabia passos de valsa.
O único homem que a compreendera, e compreendera tanto que decidiu
dançar sozinho o resto da vida depois de dançar com ela, entendera que
ela não havia nascido para seguir ninguém, e que não teria dono,
nunca. Se conheceram num forró, um arrasta-pé banhado a Luiz Gonzaga,
ele no canto, solitário, encolhido, marcado de bexigas no rosto e no
corpo todo, envergonhado, ela espiando, até que o tirou para dançar...
Tu que andas pelo mundo, sabiá, tu que tanto já voou, tu que cantas
passarinho, alivia a minha dor... tem pena d'eu, diz por favor, tu que
choras passarinho, onde anda meu amor...
No rodopio e no hálito da cafuza o moreno embelezou-se, sentiu-se
alto, pele limpa, bonito até, feliz naquela noite. Nunca mais quis
dançar com mulher nenhuma, e deixou a cafuza para que seguisse o
próprio caminho. Ele foi o único que soube amá-la como ela era. Por
isso mesmo deixou-a livre, não a obrigou a seguir com ele pelos
caminhos que, sabia, não eram os dela.
Ela continuou sua sina.
Conforme o tempo ia passando, Cafuza tornava-se mais mansa, menos
estouvada, mas cheia das marcas das danças e das ventanias que
provocava. Também nela ficavam marcas, não só nos outros que a
acusavam de lanhar seus corpos e almas com sua guerra. Toda guerra
fere dos dois lados da batalha, ela foi aprendendo, e ninguém briga
sozinho. Muitas vezes o réu era a verdadeira vítima, e agiu como
reação ao que sofreu. Outras, não. Nada se pode generalizar.
Era cada vez menos vista na aldeia, e mais nas matas. Continuava
caçando solitariamente, principalmente nas noites banhadas de luar, e
um branco doutor que a viu caçando voltou para sua Alemanha, depois da
expedição, com aquela Ártemis cafuza nas retinas, abandonou seu
cristianismo de fachada e passou a estudar o sincretismo, até entender
o que Diana dos Efésios fazia ali nas selvas da América do Sul,
travestida de índia e negra. Não sei se entendeu.
De tanto caçar e perambular mata adentro, acabou por encontrar-se com
Oçãnhe, que apiedou-se dela, depois de meses de rabos de olhos mútuos
um no outro, e oferendas de todo tipo de caça que ela lhe trazia, mas
apiedou-se mais quando a viu estendida sobre o húmus, chorando por
tudo que fizera intempestivamente na vida, e por todos os caminhos que
não deram certo, e por todas as marcas que deixara em todos com quem
havia se encontrado, ali abandonada e cheia de culpas. Então a ensinou
a usar ervas e preparar bebidas e cantar cantos que a consolavam e
aliviavam sua solidão. Deu-lhe um pequeno atabaque que ela passou a
usar amarrado à cintura, e tocar quando já não suportava mais o
silêncio a que havia se submetido por opção própria. E por falta de
opção, também.
"Quem vem lá?" Aquela voz não lhe era estranha. Já a tinha ouvido nos
sonhos, e muitas vezes dentro dos cômodos onde os moribundos jaziam,
confortados pela comunidade, até atravessarem o umbral. Era rouca, a
voz, magoada, ressentida e envelhecida de milhares de séculos, uma voz
que saíra do começo dos tempos. Cafuza tremeu, mas não se entregou.
Nunca havia se entregado, não o faria agora.
"Tire essas flechas com pontas de metal", a velha disse, e Cafuza
obedeceu. Compreendeu, também. Aquele pântano onde havia entrado eram
as terras de Nanã Buruke, e nem Iansã se atreveria a enfrentá-la. Não
agora, quando estava velha demais para lutar. As duas se olharam, avó
e neta, avó e avó, e já não sabiam quem era uma e quem era outra.
Cafuza, num último ato impulsivo, lançou-se nos braços de Nanã.
Afundou na terra fofa enlameada. Havia, enfim, chegado ao porto.
Encontrado o repouso.''